sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A VISITA

A três bruxas de Macbeth (1783), Johann Heinrich Füssli -



Numa meia-noite, insone, agonizava em sono arrebatado e inconcluso. O olho arregalado, aberto como crateras, procurando repousar nalgum recôndito escuro do quarto, sofrendo como um condenado no corredor da morte, a angústia da última noite. 

Ouvi então o bater da porta. Batidas insistentes, tão fortes, que pareciam ser de cem pessoas em desesperada aflição. 

“Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. É só isto, e nada mais". 

Tentei dormir, mas as batidas batiam e insistiam cada vez mais fortes e mais fortes. Aborrecido pela insônia que já me perdurava por meses sem fim, levantei tropeçando nas coisas, caindo nos vãos escuros, nos abismos ancestrais das escadas. 

Há alguém que não quer que eu durma. 

“É só isso e nada mais”. 

As batidas pareciam-me que iriam por a porta abaixo. Provavelmente, tinha acontecido alguma tragédia e viam-me avisar, por certo, pensei. Talvez um incêndio no prédio e tinham me vindo acudir, com certeza, imaginei. 

Batiam mais ainda, quanto mais eu me aproximava da porta, mais batiam. 

Abri a porta e, antes de qualquer coisa, entrou intrépido, um vento gélido e cortante como navalha, fazendo tremer até as estátuas nuas. 

A porta aberta. As batidas cessaram e a noite ainda perdurava lá fora, tão escura como a alma dos demônios. Demorei os olhos a vislumbrar a figura que me batia à porta. Era um velho. Senti um odor nauseabundo e pus a mão no nariz. O velho sorriu-me. 

Aos poucos - isto em segundos que pareciam centenas de horas - comecei então a visualizar o estranho e inconveniente visitante. Trajava um paletó surrado, descolorido, amarrotado. A barba pro fazer, desleixada. O bigode de cor amarelada, com certeza pelo uso de tabaco. Exalava dele um odor mal cheiroso de sujeira, um misto de bebida barata, cigarro e suor, que me causou asco. Ele sorriu mostrando os dentes amarelados, mal cuidados. Deixando escapar um mau hálito repugnante, falou com uma voz penetrante: 

- Precisa me convidar para entrar. 

Assenti com a cabeça e ele adentrou lépido, sem cerimônia, refestelando-se em minha poltrona predileta, na sala. 

- Eu o ouvi gritar e gemer, por isso, eu vim o mais rápido que pude. Não vai me servir uma bebida? 

- Não gritei nem gemi ou coisa que o valha! Estava tentando dormir. – confrontei-o, enquanto enchia um copo do meu melhor vinho. 

- Exatamente isso. – Disse o velho, saboreando a bebida. 

- Sua insônia me estava incomodando. Os seus pensamentos desencontrados, os pesadelos inquietantes e os anseios psicóticos são para mim como o mel para as abelhas. – o velho estendeu a mão para pegar mais vinho. 

- O senhor deve ser louco! – bradei, sentindo-me insultado. 

- Certamente, de loucura entendo eu muito bem. De qualquer forma, volte a tentar dormir, apazígue seu sono e pare de pensar em coisas antigas. Não te entregues à mágoa vã. 

O velho encheu outra vez o copo. 

- Aliás, o senhor que deveria estar dormindo. Afinal, quem é mesmo o senhor? 

Então, o velho ficou de pé, contra o azedume da noite, a face branca descorada, o pescoço ceifado, os lábios exangues, o olhar faiscante que tudo perscrutam e os dedos crispados, tal e qual Heathcliff. 

- MEU NOME É RANCOR. E O RANCOR NUNCA DORME. 



segunda-feira, 24 de setembro de 2018

TRAGO O SEU AMOR DE VOLTA

A mulher, de uns tempos para cá, passou a frequentar fervorosa e assiduamente, as vigílias na igreja. Quando não era um retiro espiritual que durava a semana inteira, era o Ofício da Imaculada, varando as madrugadas. Noutras vezes, era a novena da Nossa Senhora do Não-Sei-O-Quê, novenas e mais novenas, vigília de oração pelas famílias, etc., etc.

- O padre disse que vamos ficar enclausurados para rezar o terço pela paz mundial. – dizia ela ao marido.

Paz mundial, coisa nenhuma! Foi em um desses retiros madrugadas adentro que ela conheceu um diácono que a seduziu entre terços, vigílias e rezas. Ela estava mesmo era nos braços de um negro banto de olhos melosos, bonito, viril e cheiroso, que a curou de todos os males e a levou consigo encantada, como num conto de Grimm. 

A mulher que ele amava, desvencilhou-se dele como fumaça entre os dedos. Deixou todas as dores com ele e foi-se embora com diácono afro.

Ele não dormiu durante um mês inteiro.

A casa estava cheia de fotos, das coisas e do cheiro dela. Desandou e perdeu o prumo. Culpava Deus e a Igreja por tê-la perdido. Andava por aí como um notívago, perambulando maltrapilho pelos bares e noitadas. Tornou-se um ébrio e na bebida tentava esquecer, apedrejado, cruzando ruas e caminhos. Somente nos cabarés do baixo meretrício encontrava abrigo, pois há mais comiseração entre bêbados e prostitutas, do que entre clérigos e sacerdotes.

Foi numa dessas noitadas que, certo dia, viu pregado em um poste, um cartaz que dizia: TRAGO O SEU AMOR DE VOLTA. Relampejou nele, uma réstia de esperança. Enveredou-se então pelas ruas, em busca da cartomante que dizia trazer em três dias, a pessoa amada de volta.

A cartomante olhou para ele e se apiedou.

- Quer que ela volte pela linha branca ou pela linha preta? – perguntou a cartomante embaralhando as cartas. – Pela linha preta é garantido, mas vai lhe custar muito dinheiro. – frisou.

Ele pagou uma quantia considerável e ela fez o que tinha que ser feito e evocou as potestades do ar.

De fato ela voltou, três dias depois. Os olhos chorosos, cabelos desgrenhados, trêmula, mas não suplicando perdão. Ele a aceitou de volta. Recebeu-a efusivamente, encheu a casa de rosas.

A partir daquele dia, a mulher não saia mais de casa. Ele se recompôs e passou a enchê-la jóias, vestidos, perfumes e presentes caros, mas não de carinho e de afeto.

Mas a mulher não era mais a mesma. Não comia, não bebia, não falava, nem sequer dormia. Passava o dia todo apática em um sofá da sala com os olhos perdidos em um ponto qualquer no horizonte.

Mesmo assim, diante daquilo tudo, embriagado pela sua demência, ele estava radiante com a volta da pessoa amada, até que um dia, a situação tomou um rumo inesperado.

Os vizinhos sentiram um odor insuportável vindo do apartamento e acionaram a Polícia. Quando os policiais entraram no local, encontraram a mulher sentada na sala, diante da janela, já em adiantado estado de decomposição, com os olhos vividamente abertos e preservados, fitando serenamente, um ponto qualquer no horizonte. 

Imediatamente ele foi detido e acusado de homicídio doloso, ocultação de cadáver e crime de violação de sepultura, embora ele dissesse insistentemente, que só queria o seu amor de volta.





sexta-feira, 7 de setembro de 2018

AGORA TE VEJO


Eu era estudante de enfermagem e vez por outra, prestava serviços em ambulatórios e clínicas médicas, a fim de ganhar um extra. 

Havia um médico muito conceituado que requisitou meus serviços e, naquele fatídico dia, no instante momento em que entrei no consultório dele, deparei-me imediatamente com um jarro em cima da mesa. 

Olhei mais de perto e vi uma espécie de planta, talvez um cacto, talvez. A planta tinha crescido e as folhas estavam sobre os seus papeis, enroscando-se sobre as coisas. 

- Doutor, o que é isso em cima da sua mesa? 

- Chegou esta manhã. Uma cliente mandou deixar aqui. Não sei o que é... 

A planta mostrava longas folhas serrilhadas com bordas espinhentas. O caule leitoso, como o de uma bananeira. Era curto e grosso. As folhas estiravam-se como braços e ficavam dispostas ao redor da planta. As folhas dentadas, que eram semelhantes às do abacaxi, ficavam aplainadas sobre a mesa e pareciam se mover, semelhantes a tentáculos longos e delgados. Bem no meio da planta brotava uma espécie de carpelo arroxeado, como as bromélias, que parecia prestes a desabrochar. 

- O senhor não acha meio esquisito? Parece uma planta carnívora... Não gostei muito. 

- Até que eu gosto. Sinta esse perfume! – disse o doutor pondo o nariz. 

A planta exalava um suave perfume adocicado, quase que imperceptível. Era como o odor de hortelã ou camomila, um tanto inebriante. 

- E se for uma planta venenosa, doutor? 

- Ora, deixe de bobagens! Vou até colocá-la aqui na janela do consultório. 

- E o senhor sabe quem lhe mandou essa planta estranha? 

O doutor fez uma cara de menino maroto, quanto está fazendo alguma travessura. Confidenciou-me em voz baixa que quem lhe havia mandado a planta fora uma cliente muito jovem e bonita. Uma jovem angolana que viera fazer alguns exames ginecológicos, um dia desses. 

- Ela é uma morena lindíssima! – Disse eufórico. – e que par de pernas! 

Outra vez o doutor me chamou a um canto, fechou a porta à chave e me confidenciou em voz baixa que, durante o exame, fez coisas não muito éticas. Aproveitou-se da ingenuidade da moça e a seduziu. Foi mais longe e administrou Escopolamina, que provoca amnésia e, embora a pessoa não durma, bloqueia a consciência do que está acontecendo. Um tipo de substância química utilizada com o objetivo de manipular as vítimas de abusadores sexuais. 

- Doutor isso é abuso sexual! É crime! E se ela o denunciar? O senhor vai preso e ainda vai perder sua licença médica! 

- Ora, que nada! Com a nossa “Justiça brasileira”? Vai ser a minha palavra contra a dela. Além do mais, ela é imigrante ilegal e ainda é uma negra africana! Não vai dar em nada! Eu tenho amigos juízes! 

- Nesse caso, doutor, eu mesmo vou lhe denunciar! - bradei indignado com a confissão do médico. 

Fiz menção de sair do consultório. Eu sequer lembrei que ele havia fechado a porta com a chave. Naquela hora, eu precisaria de muita calma para tentar reverter aquela situação. 

- Deixe de ser idiota! Você não passa de um bosta dum enfermeiro! Eu sou um médico conceituado. Quem vai acreditar em quem? - o médico estava ofegante e raivoso. Colocou-se na minha frente, barrando a porta. 

- Não vou deixar você sair daqui para criar problemas! – disse o médico, correndo para a mesa em que estava a planta. Abriu a gaveta e sacou um revólver. Tive a ligeira impressão que a planta estava um pouco maior do que a tinha visto. 

- Enfermeiro féla da puta! - bradou o doutor visivelmente transtornado. 

Percebi, naquela hora, o quão grave era aquele momento. No entanto, para o meu espanto, a planta que agora estava muito maior, lançou contra o médico seus tentáculos serrilhados, longos e delgados que tremulavam como serpentes esfomeadas em fúria. Balançaram por um momento sobre a cabeça do doutor, e a seguir, como se fosse um ser com uma mente demoníaca e com um instinto perverso, enrolou os tentáculos ao redor do pescoço e braços da vítima, num abraço mortal e quanto mais terrível eram os gritos de horror do desgraçado, mais altos eram os sons semelhantes a silvos e grunhidos que ressoavam da criatura que exalava agora, um fedor se tornava cada vez mais intenso e insuportável, até que finalmente, o homem deu um gemido arquejante e morreu estrangulado. Os tentáculos, um após outro, como serpentes verdes e grandes, com uma força brutal e uma velocidade infernal, levantaram-se e se retraíram, envolvendo lhe todo o corpo, apertando com descomunal força e cruel tenacidade como anacondas que se enroscam velozmente ao redor de sua presa, quebrando os seus ossos, até que não restou mais nada. 

Ainda aturdido e atônito com aquela cena grotesca e inimaginável, ouvi alguém bater insistentemente à porta. Ao abrir, deparei-me com uma belíssima jovem. Ela sorriu e entrou no consultório sem nada dizer. Pegou o jarro em cima da mesa, num abraço. Beijou carinhosamente a plantinha, que agora estava diminuta. Ao sair olhou para trás e me disse numa voz melódica: 

- Ya-te-veo. 





*Baseado em uma lenda de Madagascar. (http://mentalfloss.com/article/27399/madagascars-legendary-man-eating-tree) 



sábado, 26 de maio de 2018

Poema agraciado no XX Prêmio Ideal Clube de Literatura 2018

Ponte Metálica ou Ponte dos Ingleses na Praia de Iracema em Fortaleza. (Foto Newton Silva).


PONTE DOS INGLESES 



O ideograma do teu nome

Digo-me a ler pelo avesso

E pelo medo

Do não poder pronunciar-te

Em sussurro

Como a quase mudez do mar em meu ouvido

E em meu olhar incansável de ver-te

Em silêncio interminável

E sem resposta

E sem revezes

Da Ponte dos Ingleses.

.........................................

Poema classificado e publicado na coletânea do XX Prêmio Ideal Clube de Literatura 2018





domingo, 11 de março de 2018

O SANTO




“É preciso que se saiba que, tudo o que vemos ou pensamos que vemos, não passa de um sonho dentro de um sonho”. Edgar Allan Poe



Quando conheci o professor Serafim, ele já não estava mais em seu perfeito juízo, como diriam alguns, mas ao vê-lo naquela situação de aparente demência senil, percebi o quanto estavam enganados. O que ele me contou, em segredo, ficou escrito aqui neste caderno, para que sirva de advertência para os descrentes, embora saibamos que muitos não levarão a sério, até que seja tarde demais. 

O professor Serafim era um homem de muito estudo, digno de respeito e estudioso das filosofias, religiões e línguas antigas. Agnóstico, sem, no entanto, se rotular ateu, considerava inútil discutir temas metafísicos, pois são realidades não atingíveis através do conhecimento. Para ele, a razão humana não possui capacidade de fundamentar racionalmente a existência de Deus. Talvez por essas razões, algum aluno religioso, deixou com ele aquela pequena estatueta - da qual contarei em seguida - pois sabia que a curiosidade dele era bem maior do que qualquer outra coisa, pois o ensino da filosofia não precisa ser complexo, nem intricado. Tem a ver com curiosidade, a mania de fazer perguntas e de querer saber mais, como diria Jean-Jacques Rousseau: “Só se é curioso na proporção de quanto se é instruído”. 

Foi numa tarde de sábado que o professor Serafim chegou a sua casa e encontrou ao pé do portão, uma pequena estátua, cuidadosamente esculpida em madeira maciça, tendo a aparência de um santo católico. Intrigado, o professor Serafim que não era dado a superstições das religiões, muito menos da Católica, embora as estudasse por puro academicismo, levou consigo, mesmo assim, o pequeno artefato, que media mais ou menos dez centímetros de comprimento por cinco de largura. A pequena imagem tinha a aparência, como oportunamente dito antes, de um santo católico. 

O ícone de aparência bem antiga representava cuidadosamente talhada em um bloco de madeira, a figura de um rapaz paramentado com uma veste eclesiástica, semelhante a uma sotaina própria de diáconos, presbíteros, bispos e seminaristas. Ele observou que a veste possuía os 33 botões de alto a baixo, representando a idade de Cristo, e cinco botões em cada punho, representando as cinco chagas de Cristo. Havia ainda, uma faixa à cintura, de cor preta com um colarinho branco. O preto representando a morte para o mundo, e o branco, a pureza, segundo o Codex Iuris Canonici, bem entendido. 

Observou ainda, o professor Serafim, que o rosto da imagem mostrava os olhos revirados em agonia, embora a boca tivesse um estranho sorriso, como se experimentasse ali um prazer lascivo, quase sádico. No entanto, o que mais o impressionou, foi uma corrente feita de ferro que se fundia com a madeira, que acorrentava a estátua em forma de cruz. O jovem rapaz representado na escultura tinha ainda as mãos violentamente amarradas para trás, tão bem esculpido, com tanto esmero, que dava para ver os pulsos dilacerados. 

No dia seguinte, o professor levou a pequena estátua para um padre que era bastante versado em hagiologia e hagiografia, a fim de identificar quem estava ali representado na escultura, já que ele não conseguira encontrar nenhuma semelhança com alguns santos católicos que ele conhecia. 

Nota: o professor teve a leve impressão de que a estátua estava um pouco maior do que o dia anterior, mas não se deu ao trabalho de conferir o tamanho e não levou mais em consideração. 

O hagiólogo ficou espantado e eufórico com a estátua. Era realmente uma obra de arte digna de Michelangelo. Os detalhes eram impressionantes. Realmente parecia ser uma escultura de um santo católico desconhecido até então para ele e não havia nenhuma inscrição que o identificasse. Concluiu que deveria ser um mártir, mas sem certeza alguma. 

Porém, num rápido exame, o sacerdote percebeu umas ranhuras na parte inferior da estátua que, na verdade, observou o professor Serafim, não eram ranhuras, e sim, uma espécie de escrita, muito semelhante à língua Acádia. O acádio (lišānum akkadītum), também conhecido como acadiano ou assiro-babilônio era uma língua semítica da família afro-asiática, falada na antiga Mesopotâmia há mais de 2.500 anos antes de Cristo, particularmente pelos assírios e babilônios, o que era muito estranho, pois, naquele caso, a adoração de santos católicos só ocorreu por volta do ano 155, depois de Cristo, com o suposto martírio do bispo Policarpo de Esmirna. A língua Acádia já estaria extinta há muitos séculos e com certeza, não seria um artefato católico e sim babilônico. Porém, as vestes eclesiásticas da estátua e a corrente em forma de cruz eram sim, de culto politeísta católico, o que se sugeriria ser um objeto falso. Algum tipo de fraude arqueológica, tais como a Tiara de Saitafernes e a múmia de Rhodugune. 

Um dia depois, o professor Serafim percebeu com grande susto, que a estátua estava o dobro do tamanho desde o dia quando a encontrou. E nos dias que se seguiam, parecia que dobrava de tamanho cada vez mais. O professor passou então a ter sonhos inquietantes, noites mal dormidas, insônias intermináveis. A imagem parecia possuí-lo. Dizia que a estátua lhe recitava poemas a noite toda em uma língua antiga e ininteligível. Impedia-lhe o sono e clamava, varando a noite toda: traduza-me! 

Conta-se que o professor Serafim entrou em profunda depressão, abandonando o trabalho e a convívio social, se fechando no escritório por dias e semanas inteiras. 

Uma senhora que fazia a limpeza da casa do professor, relatou-me certa vez, que podia ouvi-lo discutir com a alguém até altas horas da noite. Ela não estranhou muito, pois era comum o professor receber visitas de alunos e professores que ficavam por horas debatendo sobre assuntos de seus estudos. Muitas vezes, porém, permanecia em silêncio por dias a fio, até que um dia saiu do escritório muito abatido, com aparência doentia, o olhar frio, uma irremediável amargura de espírito, mas, no entanto, percebia-se um radiante sorriso no rosto. 

- Traduzi, enfim, o cuneiforme, embora não possa me comparar a Henry Creswicke. – disse-me sorrindo, no dia em que o visitei, pois eu estava muito preocupado com sua saúde mental. 

Logo eu quis saber do que se tratava a inscrição. 

O professor mudou o semblante e pôs o dedo na boca, pedindo silêncio. Chamou-me a um canto, sussurrando, como quem conta uma travessura. 

- Fale baixo! Ele pode nos ouvir. – segredou-me com os olhos úmidos e rutilantes. 

Naquele momento tive dúvidas de que o professor Serafim estivesse em pleno uso de suas faculdades mentais. Ele pediu que entrássemos no escritório e, em seguida, fechou a porta com chave atrás de mim. Havia uma estátua do tamanho de um homem. Estava paramentada com vestes eclesiásticas, como um sacerdote. Notei que as correntes estavam arrebentadas no chão. 

Ainda curioso, perguntei ao professor do que se tratava a tal inscrição acadiana. 

- William Shakespeare estava certo quando escreveu que “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”! A existência de uma consciência suprema já havia sido percebida por Hermes Trimegisto! A Física Quântica já comprovou e registrou na teoria onda-corpúsculo que todo átomo é composto de matéria e energia. A chave está no Sefer Yetzirah: "Em trinta e três caminhos maravilhosos da sabedoria legislou YAH YHWH dos Exércitos”! – Bradava o professor eufórico. 

- Professor, e a inscrição, o que dizia? – perguntei, agora já assustadíssimo! 

- Você quer saber o que estava escrito na língua Acádia? Pois bem, não lhe direi simplesmente, vou fazer-me parte dela! 

O professor Serafim foi até a estátua do santo e entrou nela, encerrando-se a si próprio. Senti um torpor, uma sensação nauseante, um transe cataléptico. A minha visão foi desvanecendo, sentindo esvair-me a vida e tomado de pavor, ainda pude ouvir as últimas palavras do professor: 

- A inscrição dizia, LIBERTE-ME!




domingo, 28 de janeiro de 2018

O RETRATO



Minha tia tinha segredos. Ela guardava cuidadosamente embrulhado em um delicado tecido rendado, um retrato emoldurado dentro de um baú velho, passado à sete chaves, escondido debaixo da cama. Ninguém, nem mesmo o marido, meu tio, sabia de quem era a dita foto emoldurada que ela venerava com tanto afinco. 

Meu tio não se ocupava sequer em querer saber de quem era a foto misteriosa. Era um homem que lidava com o gado e passava a maioria do tempo dentro dos currais e dos estábulos, não se interessando por caprichos de mulheres. Ele até fazia troça com aquela história. 

- Deve ser a minha foto pra espantar as muriçocas! – Dizia galhofando, em estrondosa gargalhada. 

Muitas vezes, minha tia entrava no quarto, trancava a porta por dentro, demorava quase o dia inteiro enfurnada, a título de fazer uma arrumação. Há quem diga - por ter visto uma vez pelo buraco da fechadura - que ela ficava olhando o tal retrato por horas a fio, com lágrimas nos olhos, petrificada diante daquela moldura. 

Era como se fosse um ritual. 

Quantas vezes - nem me lembro mais - perguntei para minha velha tia, de quem era aquele retrato, que ela guardava com tanto carinho. Ela me olhava com um olhar terno, um sorriso tímido e gentil, então acabava desconversando, entabulando outro assunto e não dando chance para mais nada. 

Aquele retrato misterioso aguçava a curiosidade de todos naquela casa. Imaginava-se diversas teorias da conspiração. Seria o retrato de um amante, uma paixão inesquecida, perdida nas brumas do tempo, a quem ela dedicava aquela veneração e tamanho apreço? É certo que não era a foto do pai, pois não seria motivo de tanto segredo e mistério, pois havia outras fotos dele penduradas pela casa. Muitos se indagaram sobre aquele retrato, mas minha tia tinha sempre arranjava uma desculpa para não se falar sobre o assunto. 

Passou-se o tempo, até que o destino embaralhou as cartas. 

Numa manhã, recebi a notícia de que minha tia fora acometida de uma dor repentina e atroz, que não lhe deu tempo mais para nada. Padeceu silenciosamente, sem grandes embaraços. A morte abocanhou-a com seu manto e levou também com ela seus segredos. Embora seja certo de que, talvez, a morte tenha mais segredos para nos revelar do que a vida. 

No dia seguinte da morte dela, fui ver como estava meu tio. Conversamos pouco. Ele circunspecto, o olhar vazio, o semblante sereno. Eu, aguçado ainda pela curiosidade, perguntei para ele sobre aquela foto misteriosa. Ele sorriu. Disse-me que foi a primeira coisa que ele pensou em olhar, depois que ela tinha morrido. 

Enfim, o mistério da foto seria revelado, pensei, aproximando-me de meu tio. 

- Quando ela morreu... - Disse ele devagar, os olhos fechados, pensativo. - Fui até o velho baú e peguei a moldura, que estava embrulhada em um pano, mas não tive coragem de olhar. Como ela nunca revelou para ninguém, nem mesmo para mim, de quem era aquele retrato, então, não tive coragem suficiente de olhar e ver de quem era foto. 

- O que o senhor fez com o retrato? – Perguntei, aflito. Não me cabia mais de tanta curiosidade. 

- No velório dela, antes de fechar o caixão, sem que ninguém percebesse, botei o retrato do jeito que o encontrei dentro do caixão, junto com ela. Pensei que seria certo que ela levasse esse segredo com ela. 

Fiquei pasmo e ao mesmo tempo um tanto quanto decepcionado. Como poderia existir alguém como o meu tio, sem ter um mínimo de curiosidade? Ele teve nas mãos a chance de descobrir aquele mistério e o que ele fez? Não podia acreditar que ele tenha feito aquilo. 

Olhei para meu tio. 

Ele agora estava com um sorriso no rosto, como o sorriso dela, um sorriso tímido e gentil. 



sábado, 20 de janeiro de 2018

A CARTA




Dona Miúda, como fazia todos os dias, já estava na cozinha preparando o café para o seu Ildefonso e arrumando as coisas para o almoço, quando, pela janela da cozinha, que dava para o quintal, viu o menino. Ainda era cedo da manhã e dona Miúda estranhou aquele menino àquela hora. Olhou bem para ele. Estava bem vestido, com roupas finas, de sapatos bem lustrosos, sério. Com certeza não era daquelas bandas.

- O que será que o diacho desse menino quer aqui, numa hora dessas? – Falou baixinho, sussurrando para si própria, tirando o avental e ajeitando o vestido. O menino continuava lá em frente à porta principal, esperando. Trazia um envelope com ele, observou dona Miúda.

Abriu a porta devagar, e o menino estava lá em pé, parado, empedernido como um soldado.

- Ôxente! Que diacho vosmicê veio fazer aqui, a essa hora, seu menino? – Perguntou bem ríspida. Àquela altura, dona Miúda já estava com um pressentimento ruim.

- Bom dia, senhora! – Disse o menino, solene. – Trago uma carta para o seu marido. Ele está?

- Uma carta? Que diacho de carta é essa? Posso ver? – Dona Miúda que já não estava gostando daquele menino bem cedo de manhã na sua casa, com a história da carta, então, lhe aguçou mais ainda a curiosidade.

- Não posso lhe mostrar a carta, não, senhora. Só posso entregá-la somente em mãos próprias, ao próprio destinatário, que no caso é o senhor seu marido. Caso ele não esteja em casa, terei de esperá-lo, nem que seja por um dia inteiro. Não me foi dada a opção de voltar sem ter entregue a carta. – Disse o menino num só fôlego, circunspecto.

Dona Miúda ficou emudecida diante de tanta eloquência daquele fedelho esnobe. Ficou imaginando o que seria o diabo daquela carta. Será que o marido tinha se envolvido nalguma falcatrua? Ou então era a carta de uma amante? Também lhe passou pela cabeça que poderia ser um convite de alguém importante para uma festa, quem sabe um casamento chique da alta sociedade. Aquele menino era muito bem-educado e não se parecia, nem de longe, com nenhum dos meninos dali das redondezas. Mas era certo que o tal menino não lhe entregaria a dita carta.

- O Ildefonso, meu marido, está tomando banho. – Enfatizou dona Miúda – Vou ver se ele já terminou. Vosmicê menino aceita um cafezinho? Quer entrar um pouco? Fiz um bolo de batata-doce agorinha mesmo, quer um pedaço? – Perguntou ela.

- Infelizmente, terei que declinar de seu convite, senhora. Minha tarefa é apenas entregar essa carta ao senhor seu marido, e nada mais. Não posso aceitar nada em troca. – Disse o menino que continuava ali, em pé, impassível.

Dona Miúda suspirou e entrou, deixando a porta entreaberta. Olhou para trás e viu que o menino continuava ali, petrificado, na mesma posição. Aquilo já estava ficando esquisito, pensou. Entrou no quarto e encontrou o seu Idelfonso já vestido, a toalha em volta do pescoço, enxugando o cabelo.

- Tem um menino esquisito, metido a besta, aí fora, te procurando. Quer entregar uma carta. – Falou dona Miúda, já meio abusada com aquela história.

- Um menino? Carta para mim? Lá fora? Tem certeza? – Retrucou abalado, o seu Ildefonso.

Dona Miúda percebeu logo a mudança no semblante do marido. Já o conhecia há mais de quarenta anos e sabia quando tinha alguma coisa errada com ele. Sabia, por exemplo, só em olhar para ele, quando estava feliz ou preocupado. Sabia até quando estava mentindo. Percebeu que ele, naquele momento em que ela lhe falou do menino e da carta, como ele teria ficado bastante nervoso. O suor começou a escorrer pelo corpo e a lhe encharcar a camisa. Nem parecia que ele tinha acabado de se enxugar. Viu também quando ele se esgueirou até a porta do quarto para ver o menino que continuava lá, incólume, em posição de sentido, em frente à porta entreaberta. Viu ainda quando ele correu para o banheiro, esvaindo-se em fezes, que lhe escorria pernas abaixo. Percebeu assustada que tudo aquilo era muito mais sério do que imaginava ser e viu ainda, que aquele mau pressentimento que sentiu bem antes, estava se tornando real.

O marido saiu do banheiro já recomposto. Abraçou dona Miúda e ela teve a impressão de que ele estava bastante febril e tremia muito. Dona Miúda ia já saindo às pressas para fazer um chá de gengibre, para baixar a febre, quando ele a deteve. Agarrou-a com mão forte e foi com ela até a porta, onde esperava-o, o menino. Dona Miúda, sem entender nada, começou a sentir fraqueza nas pernas e sentou-se para não cair. O seu Idelfonso recebeu a carta, abriu-a e leu pacientemente. Leu outra vez e mais uma vez. Dona Miúda observava o marido absorto com a carta na mão, diante do menino. Devolveu o papel ao menino que deu meia volta e saiu sem olhar para trás.

- O que foi, Ildefonso? O que foi aquilo? O que tinha na carta? – Perguntou Dona Miúda, aflita, desesperada, sentada, quase desfalecendo.

- Há coisas que não se deve saber, mulher. – Disse o marido, revigorado.

Um vento forte entrou casa adentro, balouçando as cortinas. A manhã estava radiante de sol de um dia de verão. Ildefonso pegou a mulher pela mão.

- Não era a carta que eu pensei que fosse. – Disse ele, sereno, beijando a testa da esposa, atônita, perplexa e confusa. Sentou-se à mesa, como se nada tivesse acontecido.

- Vamos tomar café. – disse.




A VISITA

A três bruxas de Macbeth (1783),  Johann Heinrich Füssli - Numa meia-noite, insone, agonizava em sono arrebatado e inconcluso. ...